terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Quem conta um conto...

"Tenho que ter paciência para não me perder dentro de mim: vivo me perdendo de vista. Preciso de paciência porque sou vários caminhos, inclusive o fatal beco-sem-saída" (Clarice Lispector )


Ela estava exausta. Há dias não conseguia dormir em paz. Acreditava que uma vida boa era uma vida feliz, mesmo com alguns momentos nebulosos. Nos últimos 15 dias estava vivendo uma vida nebulosa com alguns momentos felizes. Claro que podia ser uma fase. Mas podia ser também um prelúdio de uma sinfonia que ela não queria escutar. E esta dúvida a atormentava muito mais do que os desentendimentos ou as diferenças. Lembrava-se constantemente de uma metáfora usada pelo escritor Caio Fernando de Abreu - “...Você rasga devagar o seu pulso com as unhas para que eu possa beber. Mas um dia será demasiado esforço, excessiva dor...” – e se perguntava até onde poderia ser uma planta sedenta, enquanto, por outro lado, tinha certeza de que com relação a este mesmo assunto, já não conseguiria ser quem alimenta, pois já tinha doado todo o sangue que tinha. Encontrava-se em um dilema, mas um dilema da vida, que ela própria não poderia resolver. Teria que esperar, e esperar era um fardo.


Te amo sem saber como, nem quando, nem onde
te amo diretamente sem problemas nem orgulho
assim te amo porque não sei amar de outra maneira
senão assim deste modo em que não sou nem és
tão perto que tua mão sobre meu peito é minha
tão perto que se fecham teus olhos com meus sonhos” (Pablo Neruda)



Havia se acostumado aos doces dias de sua simples vida, que fornecia tudo quanto seu coração mais desejava. Ela era a princesa de seu castelo, vivendo seu “felizes pra sempre” ao lado do príncipe. Havia se acostumado com a atenção, o amor, o carinho. Sabia que a maioria das pessoas caía numa rotina sem graça, mas ela não. Aprendeu a valorizar cada um dos momentos simples e tão grandiosos ao mesmo tempo. Ganhou uma nova família. Adquiriu novos hábitos. Conheceu novos temas. Adaptou-se a novas visões de vida. Rendeu-se a novos conceitos. Tolerou novas maneiras. Abandonou muitas das concepções antigas em favor do bem maior. Mas isso não. Isso ela não podia. Enquanto ele se prendia a um fato isolado, achando que tudo girava em torno de certo e errado, ela via mais do que isso. Ela via uma diferença gritante, um conflito sério de valores. Ela olhava pra trás e via todos os problemas anteriores girando em torno da mesma coisa. Ela olhava pro presente e via o mesmo. Ela olhava pra frente e não conseguia enxergar que fosse diferente. E isso a preocupava.


"Te vejo perdendo-se todos os dias entre essas coisas vivas onde não estou. Tenho medo de, dia após dia, cada vez mais não estar no que você vê. E tanto tempo terá passado, depois, que tudo se tornará cotidiano e a minha ausência não terá nenhuma importância. ” (Caio F.Abreu)



Ela queria gritar, implantar na mente dele o juízo que habitava a mente dela, a verdade, para ela mais do que absoluta, de que o que realmente importava acima de tudo era a relação deles. Muito mais do que a relação de amor homem e mulher, mas também a relação de respeito, de carinho, de lealdade. Queria ser como no filme e fazer a inserção de uma idéia nos sonhos dele enquanto ele dormisse. Queria que ele enxergasse o valor da família que eles eram. Que visse que determinadas coisas não mais cabiam na vida preenchida deles, que determinados espaços não estavam mais vazios. Não... ela sabia que ele enxergava. Ela só queria que fosse isso o que realmente importasse para ele também.


"Mergulho no cheiro que não defino, você me embala dentro dos seus braços, você cobre com a boca meus ouvidos entupidos de buzinas, versos interrompidos, escapamentos abertos, tilintar de telefones, máquinas de escrever, ruídos eletrônicos, britadeiras de concreto, e você me beija e você me aperta, e você me leva para Creta Mikonos, Rodes, Patmos, Delos, e você me aquieta repetindo que está tudo bem, tudo, tudo bem” (Caio F.Abreu)



Mas ela simplesmente não podia fazer nada disso. E então ficava esperando um sinal, o desenrolar dos dias, qualquer coisa que mostrasse que não seria sempre como estava acontecendo agora. Ela agarrava-se talvez à idéia de que era apenas efeito colateral de uma das atividades que por vezes ele perdia a medida, mas depois voltava ao normal, o que ela conhecia bem. Afinal, compartilhavam de tantas características... Era o que por vezes ele mesmo a fazia acreditar, com seu discurso, com sua atitude, ainda que por vezes relutante. Ela sabia que ele também lutava por ela, e isso... isso já fazia uma diferença enorme. A diferença de cair nos seus braços e saber porquê lutar. A diferença de todos os dias acordar e tentar mudar um pouco mais, senão para ser melhor na sua concepção, ao menos para ser melhor para ele. A diferença de saber que talvez ele também acordasse todos os dias e pensasse nisso. E pensasse nela. E em quanto já foram e ainda seriam felizes.


"Sôfrego, torno a anexar a mim esse monólogo rebelde, essa aceitação ingênua de quem não sabe que viver é, constantemente, construir, não derrubar. De quem não sabe que esse prolongado construir implica em erros, e saber viver implica em não valorizar esses erros, ou suavizá-los, distorcê-los ou mesmo eliminá-los para que o restante da construção não seja abalado” (Caio F.Abreu)


E tudo que ela queria era descansar. Dormir o primeiro sono tranqüilo das últimas 15 noites. Deixar pra trás os pesadelos e voltar a sonhar. Sonhar e reinar no seu castelo que ainda tinha tanto espaço para construir. Construir a vida de sonhos que eles pensaram a dois. A base estava ali, forte. E forte também estavam os braços dela para voltar a trabalhar nisso, mas só se ele a acompanhasse. Ela só queria se livrar do fantasma da diferença enevoando este mundo azul. Ela pensou muito. E ainda que relutante e com muito medo, ela acreditava. Acreditava que tudo de mal ficara pra trás. E caía de novo, pronta para flutuar.


"Pensar no que está sendo, ou antes, não, não pensar, mas enfrentar e penetrar no que está sendo é coragem. Pensar é ainda fuga: aprender subjetivamente a realidade de maneira a não assustar. Entrar nela significa viver . (Caio F.Abreu)


Foi isso.

5 comentários:

Sandro Ataliba disse...

O momento em que a gente deixa de acreditar, a gente deixa de viver.
O momento em que a gente deixa de amar, a gente deixa de viver.
O momento em que a gente deixa de viver... você entendeu. ;)
♥x!

Anônimo disse...

Muito profundo para um comentário meu :o)

Beijos minha amiga!

Edward de Souza disse...

Oi Thaís!
A felicidade é um bem. Equivale a uma ética de bens e fins. É identificada com a virtude, a sabedoria, o prazer e a prosperidade. É, segundo São Tomás, um bem perfeito de natureza intelectual. Não é simplesmente um estado de alma, mas algo que a alma recebe de fora. É justo, pois, buscar a felicidade. Cabe a nós abrir a porta para que ela entre.

Gostei do seu blog e estou lhe seguindo!

Abçs,

Edward de Souza

Flávia Shiroma disse...

Querida amiga,
Hoje estou aqui especialmente para agradecer pelas palavras de conforto de ontem lá no meu blog.

Você escreveu: "Acho que você está vivendo algo que já considera passado, o que explica a impaciência."
E isso me gerou um insight que me fez acalmar. Todos os insights nos acalmam, pois significa que encontramos uma explicação (por menos que seja) para alguma coisa que queremos explicar e não conseguimos.
É claro que todo o meu hoje já é passado, mas nunca pensei sob este ângulo. Por isso tanta intolerância e ansiedade. É como se eu estivesse à frente de mim mesma. Minha alma está no Brasil, mas meu corpo deve permanecer preso neste país até o dia certo, o dia do embarque.

Como não pensei nisso antes?

Obrigada pelas palavras, mais uma vez!!

Um beijo!

Paula Li disse...

Oi Taís, obrigada pela visita, dei uma rápida passeada no seu blog e me identifiquei com sua postura sobre o selinho.
No meu caso, o contragosto é mais pela imposição das regrinhas.
Espero que tenhamos mais coisas em comum, no meu blog escrevo muito sobre relacionamento, comportamento e cotidiano e espero que você goste.
Seja bem-vinda,
bjs